sexta-feira, 29 de junho de 2007

Sobre escritores e repórteres

Sempre relacionei Norman Mailer a Ernest Hemingway. Claro que não no estilo, porque definitivamente a verborragia do Brooklin não combina com as silenciosas pescarias em Montana, mas com certeza na macheza antiquada e naquela segurança e autoridade do “vim, vi e contei” que os dois compartilham ao escrever. Imagino que eu não seja o primeiro a pensar nessa analogia, mas na verdde nunca li nem ouvi a comparação antes. Um dos pontos que aproxima Mailer e Hemingway é o fato de terem sido escritores e jornalistas, tendo enfrentado certamente as contradições internas resultantes de duas atividades semelhantes nas ferramentas e quase opostas nos objetivos. Nesse sentido o autor de O Velho e o Mar parece ser bem melhor resolvido. Já Mailer, no prefácio de “O Super-homem vai ao supermercado” (coleção Jornalismo Literário, da Cia. das Letras), explicita sua opinião pouco positiva a respeito do jornalismo, afirmando que nunca trabalhou como jornalista e não gosta dessa profissão.

[leia aqui post sobre o prefácio]

“O Super-homem vai ao supermercado” é composto por três longas reportagens, publicadas algum tempo depois do fato retratado (sem as exigências de pressa das notícias), repletas de referências históricas, centradas em relatos de fatos reais, com personagens reais, incluindo-se o autor, que se envolve nos eventos narrados. Tudo isto contendo descrições e diálogos absolutamente literários, que Mailer prefere chamar de ficcionais, abraçando uma perigosa conotação. Mas para evitar o rótulo do new journalism, Norman Mailer prefere se declarar um romancista, renegando o jornalismo a um papel inferior. Ao tentar lavar as mãos da sujeira escura dos embrulha-peixe, ele propositalmente confunde jornalismo com mau jornalismo, mas parece agir menos por convicção do que com a intenção de esquentar mais uma de suas muitas polêmicas – com Tom Wolfe, no caso.

A distinção entre as duas funções certamente existe, mas isso nunca impediu Hemingway de exercê-las com igual competência. Na sua prosa, o escritor parece começar onde parou o jornalista. Para contar uma história, Hemingway-romancista utiliza-se do caderno de anotações e das lembranças de Hemingway-repórter. Depois de viver em Paris e assistir touradas em Pamplona, ele criou Jack Barnes e Pedro Romero. Mailer descreveu os óculos de Gene McCarthy ou as filhas de Nixon para nos falar de política e das diferenças entre democratas e republicanos. Definitivamente jornalismo.

Em relação ao livro propriamente dito, uma das primeiras coisas que chama a atenção é o pequeno interesse despertado originalmente pelo assunto, principalmente dos dois primeiros ensaios. A verdadeira política americana não aparece senão em sombras. As convenções, grandes eventos midiáticos que marcam a escolha dos candidatos à presidência pelos dois partidos americanos é uma farsa vazia e sem surpresas e Mailer não esconde isso, nem tempera o texto com surpreendentes revelações. Quando descreve personagens e ambientes, mostra sua força de romancista (aos 25 anos, ele publicou um dos mais importantes livros norte-americanos), mas esses protagonistas e cenários são, em geral, muito entediantes. Quando, entretanto, se aproxima de eventos de real interesse histórico, como o chamado Cerco de Chicago de 1968, o jornalismo literário de Mailer mostra sua vocação como uma das melhores formas modernas de descrever tais acontecimentos.

É claro que em artigos com as características do jornalismo literário, o texto reflete as características individuais do autor, ainda mais no caso de um sujeito com personalidade tão forte. “O Super-Homem...” é autocentrado, autocondescendente, machista e repleto de referências semi-intelectuais. Aquelas opiniões presunçosas que Mailer finge compartilhar com o leitor estão fartamente distribuídas por todo livro. E assim como em seus romances, ele procura constantemente provocar incômodo, embora utilizando menos palavrões, seu expediente mais usual. Essas fraquezas mostram-se por completo na sua insistência bipolar de se acusar e se absolver de covardia nos episódios de Chicago. A julgar pelos seus relatos, Mailer degladiou-se muito tempo com o remorso por não ter tomado parte em praticamente nenhuma das sangrentas manifestações populares na cidade, sempre por motivos fúteis, como o porre da véspera ou uma farra já marcada com Hugh Hefner. Felizmente para seus leitores, Hemingway não ocupou muitas linhas com irritantes conflitos internos em “Adeus às Armas” e eu não conheço ninguém que tenha se perguntado se o Papa marcava bacanais para o horário das batalhas durante a Guerra Civil Espanhola.

Mas certamente o balanço é positivo. O olhar de Mailer é atento, crítico e está anos à frente daqueles que o cercam. Seus cinismo e lucidez servem muito bem para descrever manipulações, sinceridades e desencantos existentes por trás das festas de gala republicanas e das grandes mobilizações contra a Guerra do Vietnã ou o racismo. O esvaziamento do discurso político, suas causas e efeitos, o encanto pessoal de Kennedy, a loucura da geração LSD, tudo visto de perto, às vezes de dentro. Aliás, muito antes da dica do posfácio – para meu orgulho – percebi em alguns trechos a relação com o jornalismo-gonzo, que conheci por influência do excelente filme Medo e Deliro em Las Vegas, de Terry Gilliam. No fim da leitura, a sensação que, assim como em À Sangue Frio, Filme, ou porque não, Paris é uma Festa, sejam jornalistas ou escritores, algumas pessoas são naturalmente capacitadas para extrair sutilezas humanas de quase todas as situações, bastando para isso colocar-se nos lugares certos, observar com cuidado e colocar no papel suas impressões, independente do nome que dê a esse esforço.

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